sexta-feira, 13 de junho de 2008

"Sem Missais, Nem Broquéis"(André Lima)

Eu li os poemas,
Medi as simetrias,
mas não houve espanto
frente às ironias.

Nem transpirei
pra não dar Bandeira,
tal como Aniceto
fiz tudo de primeira

Sem x no plano,
o puro branco e preto,
preto de mano,
branco de hermeto

Sou talhado
nos ossos de Ovídio,
meu corpus gerado
de suicídio em suicídio.

Sr. Idem, como vai passando?
Bem, eu vou me perpetuando
através de carimbos e papéis,
muitos cyros, varias raquéis,
sem Missais, nem Broquéis

Sigo com meu credo
em Cruz,
mesmo com o assédio
dos anagramas de baixa luz

A cartola vale
mais que o roedor,
o valor das pedras de Paulo
em um lago de Bashô.

Meu canto do cisne
pede partitura,
o Tom é de Zé,
Um Décio de estrutura.

Fuego en La Rubia
Cabeza de Fonseca,
em meio ao Inferno
verto a Fix em escopeta.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

"O Cobrador" Rubem Fonseca

NA PORTA da rua uma dentadura grande, embaixo escrito Dr. Carvalho, Dentista. Na sala de espera vazia uma placa, Espere o Doutor, ele está atendendo um cliente. Esperei meia hora, o dente doendo, a porta abriu e surgiu uma mulher acompanhada de um sujeito grande, uns quarenta anos, de jaleco branco.Entrei no gabinete, sentei na cadeira, o dentista botou um guardanapo de papel no meu pescoço. Abri a boca e disse que o meu dente de trás estava doendo muita. Ele olhou com um espelhinho e perguntou como é que eu tinha deixado os meus dentes ficarem naquele estado.Só rindo. Esses caras são engraçados.Vou ter que arrancar, ele disse, o senhor já tem poucos dentes e se não fizer um tratamento rápido vai perder todos os outros, inclusive estes aqui — e deu uma pancada estridente nos meus dentes da frente.Uma injeção de anestesia na gengiva. Mostrou o dente na ponta do boticão: A raiz está podre, vê?, disse com pouco caso.São quatrocentos cruzeiros.Só rindo. Não tem não, meu chapa, eu disse.Não tem não o quê?Não tem quatrocentos cruzeiros. Fui andando em direção à porta.Ele bloqueou a porta com o corpo. É melhor pagar, disse. Era um homem grande, mãos grandes e pulso forte de tanto arrancar os dentes dos fodidos. E meu físico franzino encoraja as pessoas. Odeio dentistas, comerciantes, advogadas, industriais, funcionários, médicos, executivos, essa canalha inteira. Todos eles estão me devendo muito. Abri o blusão, tirei o 38, e perguntei com tanta raiva que uma gota de meu cuspe bateu na cara dele, -- que tal enfiar isso no teu cu? Ele ficou branco, recuou. Apontando o revólver para o peito dele comecei a aliviar o meu coração: tirei as gavetas dos armários, joguei tudo no chão, chutei os vidrinhos todos como se fossem balas, eles pipocavam e explodiam na parede. Ar­rebentar os cuspidores e motores foi mais difícil, cheguei a machucar as mãos e os pés. O dentista me olhava, várias vezes deve ter pensado em pular em cima de mim, eu queria muito que ele fizesse isso para dar um tiro naquela barriga grande cheia de merda.Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro!Dei um tiro no joelho dele. Devia ter matado aquele filho da puta.
* * *
A rua cheia de gente. Digo, dentro da minha cabeça, e às vezes para fora, está todo mundo me devendo! Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo. Um cego pede esmolas sacudindo uma cuia de alumínio com moedas. Dou um pontapé na cuia dele, o barulhinho das moedas me irrita. Rua Marechal Floriano, casa de armas, farmácia, banco, china, retratista, Light, vacina, médico, Ducal, gente aos montes. De manhã não se consegue andar na direção da Central, a multidão vem rolando como uma enorme lagarta ocupando toda a calçada.
* * *
Me irritam esses sujeitos de Mercedes. A buzina do carro também me aporrinha. Ontem de noite eu fui ver o cara que tinha uma Magnum com silenciador para vender na Cruzada, e quando atravessava a rua um sujeito que tinha ido jogar tênis num daqueles clubes bacanas que tem por ali tocou a buzina. Eu vinha distraído pois estava pensando na Magnum, quando a buzina tocou. Vi que o carro vinha devagar e fiquei parado na frente. Como é?, ele gritou. Era de noite e não tinha ninguém perto. Ele estava vestido de branco. Saquei o 38 e atirei no pára-brisa, mais para estrunchar o vidro do que para pegar o sujeito. Ele arrancou com o carro, para me pegar ou fugir, ou as duas coisas. Pulei pro lado, o carro passou, os pneus sibilando no asfalto. Parou logo adiante. Fui até lá. O sujeito estava deitado com a cabeça para trás, a cara e o peito cobertos por milhares de pequeninos estilhaços de vidro. Sangrava muito de um ferimento feio no pescoço e a roupa branca dele já estava toda vermelha.Girou a cabeça que estava encostada no banco, olhos muito arregalados, pretos, e o branco em volta era azulado leitoso, como uma jabuticaba por dentro. E porque o branco dos olhos dele era azulado eu disse — você vai morrer, ô cara, quer que eu te dê o tiro de misericórdia?Não, não, ele disse com esforço, por favor.Vi da janela de um edifício um sujeito me observando. Se escondeu quando olhei. Devia ter ligado para a polícia.Saí andando calmamente, voltei para a Cruzada. Tinha sido muito bom estraçalhar o pára-brisa do Mercedes. Devia ter dado um tiro na capota e um tiro em cada porta, o lanterneiro ia ter que rebolar.
* * *
O cara da Magnum já tinha voltado. Cadê as trinta mi­lhas? Põe aqui nesta mãozinha que nunca viu palmatória, ele disse. A mão dele era branca, lisinha, mas a minha estava cheia de cicatrizes, meu corpo todo tem cicatrizes, até meu pau está cheio de cicatrizes.Também quero comprar um rádio, eu disse pro muambeiro. Enquanto ele ia buscar o rádio eu examinei melhor a Magnum. Azeitadinha, e também carregada. Com o silenciador parecia um canhão.O muambeiro voltou carregando um rádio de pilha.É japonês, ele disse.Liga para eu ouvir o som.Ele ligou.Mais alto, eu pedi.Ele aumentou o volume.Puf. Acho que ele morreu logo no primeiro tiro. Dei mais dois tiros só para ouvir puf, puf.
* * *
Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol.Fico na frente da televisão para aumentar o meu ódio. Quando minha cólera está diminuindo e eu perco a vontade de cobrar o que me devem eu sento na frente da televisão e em pouco tempo meu ódio volta. Quero muito pegar um camarada que faz anúncio de uísque. Ele está vestidinho, bonitinho, todo sanforizado, abraçado com uma loura reluzente, e joga pedrinhas de gelo num copo e sorri com todos os dentes, os dentes dele são certinhos e são verdadeiros, e eu quero pegar ele com a navalha e cortar os dois lados da bochecha até as orelhas, e aqueles dentes branquinhos vão todos ficar de fora num sorriso de caveira vermelha. Agora está ali, sorrindo, e logo beija a loura na boca. Não perde por esperar.Meu arsenal está quase completo: tenho a Magnum com silenciador, um Colt Cobra 38, duas navalhas, uma carabina 12, um Taurus 38 capenga, um punhal e um facão. Com o facão vou cortar a cabeça de alguém num golpe só. Vi no cinema, num desses países asiáticos, ainda no tempo dos ingleses­ um ritual que consistia em cortar a cabeça de um animal, creio que um búfalo, num golpe único. Os oficiais ingleses presidiam a cerimônia com um ar de enfado, mas os decapitadores eram verdadeiros artistas. Um golpe seco e a cabeça do animal rolava, o sangue esguichando.
* * *
Na casa de uma mulher que me apanhou na rua. Coroa, diz que estuda no colégio noturno. Já passei por isso, meu colégio foi o mais noturno de todos os colégios noturnos do mundo, tão ruim que já não existe mais, foi demolido. Até a rua onde ele ficava foi demolida. Ela pergunta o que eu faço e digo que sou poeta, o que é rigorosamente verdade. Ela me pede que recite um poema meu. Eis: Os ricos gostam de dormir tarde/ apenas porque sabem que a corja/ tem que dormir cedo para trabalhar de manhã/ Essa é mais uma chance que eles/ têm de ser diferentes:/ parasitar,/ desprezar os que suam para ganhar a comida,/ dormir até tarde,/ tarde/ um dia/ ainda bem,/ demais./Ela corta perguntando se gosto de cinema. E o poema? Ela não entende. Continuo: Sabia sambar e cair na paixão/ e rolar pelo chão/ apenas por pouco tempo./ Do suor do seu rosto nada fora construído./ Queria morrer com ela,/ mas isso foi outro dia,/ ainda outro dia./ No cinema Íris, na rua da Carioca/ o Fantasma da Ópera/ Um sujeito de preto,/ pasta preta, o rosto escondido,/ na mão um lenço branco imaculado,/ tocava punheta nos espectadores;/ na mesma época, em Copacabana,/ um outro/ que nem apelido tinha,/ bebia o mijo dos mictórios dos cinemas/ e o rosto dele era verde e inesquecível./ A História é feita de gente morta/ e o futuro de gente que vai morrer./ Você pensa que ela vai sofrer?/ Ela é forte; resistirá./ Resistiria também; se­ fosse fraca./ Agora você, não sei./ Você fingiu tanto tempo, deu socos e gritos, embusteou/ Você está cansado,/ você. acabou,/ não sei o que te mantém vivo./Ela não entendia de poesia. Estava solo comigo e que­ria fingir indiferença, dava bocejos exasperados. A farsanteza das mulheres.Tenho medo de você, ela acabou confessando.Essa fodida não me deve nada, pensei, mora com sacrifício num quarto e sala, os olhos dela já estão empapuçados de beber porcarias e ler a vida das grã-finas na revista Vogue.Quer que te mate?, perguntei enquanto bebíamos uísque ordinário.Quero que você me foda, ela riu ansiosa, na dúvida. Acabar com ela? Eu nunca havia esganado ninguém com as próprias mãos. Não tem muito estilo, nem drama, esga­nar-se alguém, parece briga de rua. Mesmo assim eu tinha vontade de esganar alguém, mas não uma infeliz daquelas. Para um zé-ninguém, só tiro na nuca?Tenho pensado nisso, ultimamente. Ela tinha tirado a roupa: peitos murchos e chatos, os bicos passas gigantes que alguém tinha pisado; coxas flácidas com nódulos de celulite, gelatina estragada com pedaços de fruta podre.Estou toda arrepiada, ela disse.Deitei sobre ela. Me agarrou pelo pescoço, sua boca e língua na minha boca, uma vagina viscosa, quente e olorosa.Fodemos.Ela agora está dormindo.Sou justo.
* * *
Leio os jornais. A morte do muambeiro da Cruzada nem foi noticiada. O bacana do Mercedes com roupa de tenista morreu no Miguel Couto e os jornais dizem que foi assaltado pelo bandido Boca Larga. Só rindo.Faço um poema denominado Infância ou Novos Cheiros de Buceta com U: Eis-me de novo/ ouvindo os Beatles/ na Rádio Mundial/ às nove horas da noite/ num quarto/ que poderia ser/ e era/ de um santo mortificado/ Não havia pecado/ e não sei por que me lepravam/ por ser inocente/ ou burro/ De qualquer forma/ o chão estava sempre ali/ para fazer mergulhos./ Quando não se tem dinheiro/ é bom ter músculos/ e ódio./Leio os jornais para saber o que eles estão comendo, bebendo e fazendo. Quero viver muito para ter tempo de matar todos eles.
* * *
Da rua vejo a festa na Vieira Souto, as mulheres de vestido longo, os homens de roupas negras. Ando lentamente, de um lado para o outro na calçada, não quero despertar suspeitas e o facão por dentro da calça, amarrado na perna, não me deixa andar direito. Pareço um aleijado, me sinto um aleijado. Um casal de meia-idade passa por mim e me olha com pena; eu também sinto pena de mim, manco e sinto dor na perna.Da calçada vejo os garçons servindo champanha francesa. Essa gente gosta de champanha francesa, vestidos franceses, língua francesa.Estava ali desde as nove horas, quando passara em frente, todo municiado, entregue à sorte e ao azar, e a festa surgira.As vagas em frente ao apartamento foram logo ocupa­das e os carros dos visitantes passaram a estacionar nas es­curas ruas laterais. Um deles me interessou muito, um carro vermelho e nele um homem e uma mulher, jovens e elegantes. Caminharam para o edifício sem trocar uma palavra, ele ajeitando a gravata borboleta e ela o vestido e o cabelo. Prepararam-se para uma entrada triunfal mas da calçada vejo que a chegada deles foi, como a dos outros, recebida com desinteresse. As pessoas se enfeitam no cabeleireiro, no costureiro, no massagista e só o espelho lhes dá, nas festas, a atenção que esperam. Vi a mulher no seu vestido azul esvoaçante e murmurei — vou te dar a atenção que você merece, não foi à toa que você vestiu a sua melhor calcinha e foi tantas vezes à costureira e passou tantos cremes na pele e botou perfume tão caro.Foram os últimos a sair. Não andavam com a mesma firmeza e discutiam irritados, vozes pastosas, enroladas.Cheguei perto deles na hora em que o homem abria a porta do carro. Eu vinha mancando e ele apenas me deu um olhar de avaliação rápido e viu um aleijado inofensivo de baixo preço.Encostei o revólver nas costas dele.Faça o que mando senão mato os dois, eu disse.Para entrar de perna dura no estreito banquinho de trás não foi fácil. Fiquei meio deitado, o revólver apontado para a cabeça dele. Mandei que seguisse para a Barra da Tijuca. Tirava o facão de dentro da perna quando ele disse, leva o dinheiro e o carro e deixa a gente aqui. Estávamos na frente do Hotel Nacional. Só rindo. Ele já estava sóbrio e queria tomar um último uisquinho enquanto dava queixa à polícia pelo telefone. Ah, certas pessoas pensam que a vida é uma festa. Seguimos pelo Recreio dos Bandeirantes até chegar a uma praia deserta. Saltamos. Deixei acesos os faróis.Nós não Lhe fizemos nada, ele disse.Não fizeram? Só rindo. Senti o ódio inundando os meus ouvidos, minhas mãos, minha boca, meu corpo todo, um gosto de vinagre e lágrima.Ela está grávida, ele disse apontando a mulher, vai ser o nosso primeiro filho.Olhei a barriga da mulher esguia e decidi ser misericordioso e disse, puf, em cima de onde achava que era o umbigo dela, desencarnei logo o feto. A mulher caiu emborcada. Encostei o revólver na têmpora dela e fiz ali um buraco de mina.O homem assistiu a tudo sem dizer, uma palavra, a carteira de dinheiro na mão estendida. Peguei a carteira da mão dele e joguei pro ar e quando ela veio caindo dei-lhe um bico; de canhota, jogando a carteira longe.Amarrei as mãos dele atrás das costas com uma corda que eu levava. Depois amarrei os pés.Ajoelha, eu disse.Ele ajoelhou.Os faróis do carro iluminavam o seu corpo. Ajoelhei-me ao seu lado, tirei a gravata borboleta, dobrei o colarinho, deixando seu pescoço à mostra.Curva a cabeça, mandei.Ele curvou. Levantei alto o facão, seguro nas duas mãos; vi as estrelas no céu, a noite imensa, o firmamento infinito e desci o facão, estrela de aço, com toda minha força, bem no meio do pescoço dele.A cabeça não caiu e ele tentou levantar-se, se debatendo como se fosse uma galinha tonta nas mãos de uma cozinheira incompetente. Dei-lhe outro golpe e mais outro e outro e a cabeça não rolava. Ele tinha desmaiado ou morrido com a porra da cabeça presa no pescoço. Botei o corpo sobre o pára­lama do carro. O pescoço ficou numa boa posição. Concentrei-me como um atleta que vai dar um salto mortal. Dessa vez, enquanto o facão fazia seu curto percurso mutilante zunindo fendendo o ar, eu sabia que ia conseguir o que queria. Brock! a cabeça saiu rolando pela areia. Ergui alto o alfanje e recitei: Salve o Cobrador! Dei um grito alto que não era nenhuma palavra, era um uivo comprido e forte, para que todos os bichos tremessem e saíssem da frente. Onde eu passo o asfalto derrete.
* * *
Uma caixa preta debaixo do braço. Falo com a língua presa que sou o bombeiro que vai fazer o serviço no aparta­mento duscenthos e um. O porteiro acha graça na minha língua presa e me manda subir. Começo do último andar. Sou o bombeiro (língua normal agora) vim fazer o serviço. Pela abertura, dois olhos: ninguém chamou bombeiro não. Desço para o sétimo, a mesma coisa. Só vou ter sorte no primeiro andar.A empregada me abriu a porta e gritou lá para dentro, é o bombeiro. Surgiu uma moça de camisola, um vidro de esmalte de unhas na mão, bonita, uns vinte e cinco anos.Deve haver um engano, ela disse, nós não precisamos de bombeiro.Tirei o Cobra de dentro da caixa. Precisa sim, é bom ficarem quietas senão mato as duas. Tem mais alguém em casa? O marido estava trabalhando e o menino no colégio. Amarrei a empregada, fechei sua boca com esparadrapo. Levei a dona pro quarto.Tira a roupa.Não vou tirar a roupa, ela disse, a cabeça erguida. Estão me devendo xarope, meia, cinema, filé mignon e buceta, anda logo. Dei-lhe um murro na cabeça. Ela caiu na cama, uma marca vermelha na cara. Não tiro. Arranquei a camisola, a calcinha. Ela estava sem sutiã. Abri-lhe as pernas. Coloquei os meus joelhos sobre as suas coxas. Ela tinha uma pentelheira basta e negra. Ficou quieta, com olhos fechados. Entrar naquela floresta escura não foi fácil, a buceta era apertada e seca. Curvei-me, abri a vagina e cuspi lá dentro, grossas cusparadas. Mesmo assim não foi fácil, sentia o meu pau esfolando. Deu um gemido quando enfiei o cacete com toda força até o fim. Enquanto enfiava e tirava o pau eu lambia os peitos dela, a orelha, o pescoço, passava o dedo de leve no seu cu, alisava sua bunda. Meu pau começou a ficar lubrifi­cado pelos sucos da sua vagina, agora morna e viscosa.Como já não tinha medo de mim, ou porque tinha medo de mim, gozou primeiro do que eu. Com o resto da porra que saía do meu pau fiz um círculo em volta do umbigo dela.Vê se não abre mais a porta pro bombeiro, eu disse, antes de ir embora.
***
Saio do sobrado da rua Visconde de Maranguape. Uma panela em cada molar cheio de cera do Dr. Lustosa/ mastigar com os dentes da frente/ punheta pra foto de revista/ livros roubados./ Vou para a praia.Duas mulheres estão conversando na areia; uma tem o corpo queimado de sol, um lenço na cabeça; a outra é clara, deve ir pouco à praia; as duas têm o corpo muito bonito; a bunda da clara é a bunda mais bonita entre todas que já vi.Sento perto, e fico olhando. Elas percebem meu interesse e começam logo a se mexer, dizer coisas com o corpo, fazer movimentos aliciantes com os rabos. Na praia somos todos iguais, nós os fodidos e eles. Até que somos melhores pois não temos aquela barriga grande e a bunda mole dos para­sitas. Eu quero aquela mulher branca! Ela inclusive está interessada em mim, me lança olhares. Elas riem, riem, dentantes. Se despedem e a branca vai andando na direção de Ipanema, a água molhando os seus pés. Me aproximo e vou andando junto, sem saber o que dizerSou uma pessoa tímida, tenho levado tanta porrada na vida, e o cabelo dela é fino e tratado, o seu tórax é esbelto, os seios pequenos, as coxas são sólidas e redondas e musculosas e a bunda é feita de dois hemisférios rijos. Corpo de bailarina.Você estuda balé?Estudei, ela diz. Sorri para mim. Como é que alguém pode ter boca tão bonita? Tenho vontade de lamber dente por dente da sua boca. Você mora por aqui?, ela pergunta. Moro, minto. Ela me mostra um prédio na praia, todo de mármore.
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De volta à rua Visconde de Maranguape. Faço hora para ir na casa da moça branca. Chama-se Ana. Gosto de Ana, palindrômico. Afio o facão com uma pedra especial, o pescoço daquele janota era muito duro. Os jornais abriram muito espaço para a morte do casal que eu justicei na Barra. A moça era filha de um desses putos que enriquecem em Sergipe ou Piauí, roubando os paus-de-araras, e depois vêm para o Rio, e os filhos de cabeça chata já não têm mais sotaque, pintam o cabelo de louro e dizem que são descendentes de holandeses.Os colunistas sociais estavam consternados. Os granfas que eu despachei estavam com viagem marcada para Paris. Não há mais segurança nas ruas, dizia a manchete de um jornal. Só rindo. Joguei uma cueca pro alto e tentei cortá-la com o facão, como o Saladino fazia (com um lenço de seda) no cinema.Não se fazem mais cimitarras como antigamente/ Eu sou uma hecatombe/ Não foi nem Deus nem o Diabo/ Que me fez um vingador/ Fui eu mesmo/ Eu sou o Homem Pênis/ Eu sou o Cobrador./Vou no quarto onde Dona Clotilde está deitada há três anos. Dona Clotilde é dona do sobrado.Quer que eu passe o escovão na sala?, pergunto.Não meu filho, só queria que você me desse a injeção de trinevral antes de sair.Fervo a seringa, preparo a injeção. A bunda de Dona Clotilde é seca como uma folha velha e amassada de papel de arroz.Você caiu do céu, meu filho, foi Deus que te mandou, ela diz.Dona Clotilde não tem nada, podia levantar e ir comprar coisas no supermercado. A doença dela está na cabeça. E depois de três anos deitada, só se levanta para fazer pipi e cocô, ela não deve mesmo ter forças.Qualquer dia dou-lhe um tiro na nuca.
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Quando satisfaço meu ódio sou possuído por uma sensação de vitória, de euforia que me dá vontade de dançar — dou pequenos uivos, grunhidos, sons inarticulados, mais próximos da música do que da poesia, e meus pés deslizam pelo chão, meu corpo se move num ritmo feito de gingas e saltos, como um selvagem, ou um macaco.Quem quiser mandar em mim pode querer, mas vai morrer. Estou querendo muito matar um figurão desses que mostram na televisão a sua cara paternal de velhaco bem-sucedido, uma pessoa de sangue engrossado por caviares e champãs. Come caviar/ teu dia vai chegar./ Estão me devendo uma garota de vinte anos, cheia de dentes e perfume. A moça do prédio de mármore? Entro e ela está me esperando, sentada na sala, quieta, imóvel, o cabelo muito preto, o rosto branco, parece uma fotografia.Vamos sair, eu digo para ela. Ela me pergunta se estou de carro. Digo que não tenho carro. Ela tem. Descemos pelo elevador de serviço e saímos na garagem, entramos num Puma conversível.Depois de algum tempo pergunto se posso dirigir e trocamos de lugar. Petrópolis está bem?, pergunto. Subimos a serra sem dizer uma palavra, ela me olhando. Quando chega­mos a Petrópolis ela pede que eu pare num restaurante. Digo que não tenho dinheiro nem fome, mas ela tem as duas coisas, come vorazmente como se a qualquer momento fossem levar o prato embora. Na mesa ao lado um grupo de jovens bebendo e falando alto, jovens executivos subindo na sexta-­feira e bebendo antes de encontrar a madame toda enfeitada para jogar biriba ou falar da vida alheia enquanto traçam queijos e vinhos. Odeio executivos. Ela acaba de comer. E agora? Agora vamos voltar, eu digo, e descemos a serra, eu dirigindo como um raio, ela me olhando. Minha vida não tem sentido, já pensei em me matar, ela diz. Paro na rua Visconde de Maranguape. É aqui que você mora? Saio sem dizer nada. Ela sai atrás: vou te ver de novo? Entro e enquanto vou subindo as escadas ouço o barulho do carro partindo.
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Top Executive Club. Você merece o melhor relax, feito de carinho e compreensão. Nossas massagistas são completas. Elegância e discrição.Fica quieto senão chumbo a sua barriga executiva.Ele tem o ar petulante e ao mesmo tempo ordinário do ambicioso ascendente egresso do interior, deslumbrado de coluna social, comprista, eleitor da Arena, católico, cursilhista, patriota, mordomista e bocalivrista, os filhos estudando na PUC, a mulher transando decoração de interiores e sócia de butique.Como é executivo, a massagista te tocou punheta ou chupou teu pau?Você é homem, sabe como é, entende essas coisas, ele disse. Papo de executivo com chofer de táxi ou ascensorista. De Botucatu para a Diretoria, acha que já enfrentou todas as situações de crise.Não sou homem porra nenhuma, digo suavemente, sou o Cobrador.Sou o Cobrador!, grito.Ele começa a ficar da cor da roupa. Pensa que sou maluco e maluco ele ainda não enfrentou no seu maldito escritório refrigerado.Vamos para sua casa, eu digo.Eu não moro aqui no Rio, moro em São Paulo, ele diz. Perdeu a coragem, mas não a esperteza. E o carro?, pergunto. Carro, que carro? Este carro, com a chapa do Rio? Tenho mulher e três filhos, ele desconversa. Que é isso? Uma desculpa, senha, habeas-corpus, salvo-conduto? Mando parar o carro. Puf, puf, puf, um tiro para cada filho, no peito. O da mulher na cabeça, puf.
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Para esquecer a moça que mora no edifício de mármore vou jogar futebol no aterro. Três horas seguidas, minhas per­nas todas escalavradas das porradas que levei, o dedão do pé direito inchado, talvez quebrado. Sento suado ao lado do campo, junto de um crioulo lendo O Dia. A manchete me interessa, peço o jornal emprestado, o cara diz se tu quer ler o jornal por que não compra? Não me chateio, o crioulo tem poucos dentes, dois ou três, tortos e escuros. Digo, tá, não vamos brigar por isso. Compro dois cachorros-quentes e duas cocas e dou metade pra ele e ele me dá o jornal. A manchete diz: Polícia à procura do louco da Magnum. Devolvo o jornal pro crioulo. Ele não aceita, ri para mim enquanto mastiga com os dentes da frente, ou melhor com as gengivas da frente que de tanto uso estão afiadas como navalhas. Notícia do jornal: Um grupo de grã-finos da zona sul em grandes preparativos para o tradicional Baile de Natal — Primeiro Grito de Carnaval. O baile começa no dia vinte e quatro e termina no dia primeiro do Ano Novo; vêm fazendeiros da Argentina, herdeiros da Alemanha, artistas americanos, executivos japoneses, o parasitismo internacional. O Natal virou mesmo uma festa. Bebida, folia, orgia, vadiagem.O Primeiro Grito de Carnaval. Só rindo. Esses caras são engraçados.Um maluco pulou da ponte Rio-Niterói e boiou doze horas até que uma lancha do Salvamar o encontrou. Não pegou nem resfriado.Um incêndio num asilo matou quarenta velhos, as famílias celebraram.
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Acabo de dar a injeção de trinevral em Dona Clotilde quando tocam a campainha. Nunca tocam a campainha do sobrado. Eu faço as compras, arrumo a casa. Dona Clotilde não tem parentes. Olho da sacada. É Ana Palindrômica.Conversamos na rua. Você está fugindo de mim?, ela pergunta. Mais ou menos, digo. Vou com ela pro sobrado. Dona Clotilde, estou com uma moça aqui, posso levar pro quarto? Meu filho, a casa é sua, faça o que quiser, só quero ver a moça.Ficamos em pé ao lado da cama. Dona Clotilde olha para Ana um tempo enorme. Seus olhos se enchem de lágrimas. Eu rezava todas as noites, ela soluça, todas as noites para você encontrar uma moça como essa. Ela ergue os braços magros cobertos de finas pelancas para o alto, junta as mãos e diz, oh meu Deus, como vos agradeço!Estamos no meu quarto, em pé, sobrancelha com sobrancelha, como no poema, e tiro a roupa dela e ela a minha e o corpo dela é tão lindo que sinto um aperto na garganta, lágrimas no meu rosto, olhos ardendo, minhas mãos tremem e agora estamos deitados, um no outro, entrançados, gemendo, e mais, e mais, sem parar, ela grita; a boca aberta, os dentes brancos como de um elefante jovem, ai, ai, adoro a tua obsessão!, ela grita, água e sal e porra jorram de nossos corpos, sem parar.Agora, muito tempo depois, deitados olhando um para o outro hipnotizados até que anoitece e nossos rostos brilham no escuro e o perfume do corpo dela traspassa as paredes do quarto.Ana acordou primeiro do que eu e a luz está acesa. Você só tem livros de poesia? E estas armas todas, pra quê? Ela pega a Magnum no armário, carne branca e aço negro, aponta pra mim. Sento na cama.Quer atirar? pode atirar, a velha não vai ouvir. Mais para cima um pouco. Com a ponta do dedo suspendo o cano até a altura da minha testa. Aqui não dói.Você já matou alguém? Ana aponta a arma pra minha testa.Já.Foi bom?Foi.Como?Um alívio.Como nós dois na cama?Não, não, outra coisa. O outro lado disso.Eu não tenho medo de você, Ana diz.Nem eu de você. Eu te amo.Conversamos até amanhecer. Sinto uma espécie de febre. Faço café pra Dona Clotilde e levo pra ela na cama. Vou sair com Ana, digo. Deus ouviu minhas preces, diz a velha entre goles.
* * *
Hoje é dia vinte e quatro de dezembro, dia do Baile de Natal ou Primeiro Grito de Carnaval. Ana Palindrômica saiu de casa e está morando comigo. Meu ódio agora é diferente. Tenho uma missão. Sempre tive uma missão e não sabia. Agora sei. Ana me ajudou a ver. Sei que se todo fodido fizesse como eu o mundo seria melhor e mais justo. Ana me ensinou a usar explosivos e acho que já estou preparado para essa mudança de escala. Matar um por um é coisa mística e disso eu me libertei. No Baile de Natal mataremos convencionalmente os que pudermos. Será o meu último gesto romântico inconseqüente. Escolhemos para iniciar a nova fase os compristas nojentos de um supermercado da zona sul. Serão mor­tos por uma bomba de alto poder explosivo. Adeus, meu facão, adeus meu punhal, meu rifle, meu Colt Cobra, adeus minha Magnum, hoje será o último dia em que vocês serão usados. Beijo o meu facão. Explodirei as pessoas, adquirirei prestigio; não serei apenas o louco da Magnum. Também não sairei mais pelo parque do Flamengo olhando as árvores; os troncos, a raiz, as folhas, a sombra, escolhendo a árvore que eu queria ter, que eu sempre quis ter, num pedaço de chão de terra batida. Eu as vi crescer no parque e me alegrava quando chovia e a terra se empapava de água, as folhas lavadas de chuva, o vento balançando os galhos, enquanto os carros dos canalhas passavam velozmente sem que eles olhas­sem para os lados. Já não perco meu tempo com sonhos.O mundo inteiro saberá quem é você, quem somos nós, diz Ana.Notícia: O Governador vai se fantasiar de Papai Noel. Notícia: menos festejos e mais meditação, vamos purificar o coração. Notícia: Não faltará cerveja. Não faltarão perus. Notícia: Os festejos natalinos causarão este ano mais vítimas de trânsito e de agressões do que nos anos anteriores. Policia e hospitais preparam-se para as comemorações de Natal. O Cardeal na televisão: a festa de Natal está deturpada, o seu sentido não é este, essa história de Pagai Noel é uma invenção infeliz. O Cardeal afirma que Papai Noel é um palhaço fictício.Véspera de Natal é um bom dia para essa gente pagar o que deve, diz Ana. O Papai Noel do baile eu mesmo quero matar com o facão, digo.Leio para Ana o que escrevi, nosso manifesto de Natal, para os jornais. Nada de sair matando a esmo, sem objetivo definido. Eu não sabia o que queria, não buscava um resultado prático, meu ódio estava sendo desperdiçado. Eu estava certo nos meus impulsos, meu erro era não saber quem era o inimigo e por que era inimigo. Agora eu sei, Ana me ensinou. E o meu exemplo deve ser seguido por outros, muitos outros, só assim mudaremos o mundo. É a síntese do nosso manifesto.Ponho as armas numa mala. Ana atira tão bem quanto eu, só não sabe manejar o facão, mas essa arma agora é obsoleta. Damos até logo à Dona Clotilde. Botamos a mala no carro. Vamos ao Baile de Natal. Não faltará cerveja, nem perus. Nem sangue. Fecha-se um ciclo da minha vida e abre-se outro.

sábado, 10 de maio de 2008

O Enfermeiro

O Enfermeiro
Machado de Assis

PARECE-LHE ENTÃO que o que se deu comigo em 1860, pode entrar
numa página de livro? Vá que seja, com a condição única de que não há de
divulgar nada antes da minha morte. Não esperará muito, pode ser que oito
dias, se não for menos; estou desenganado.
Olhe, eu podia mesmo contar-lhe a minha vida inteira, em que há outras
cousas interessantes, mas para isso era preciso tempo, ânimo e papel, e eu só
tenho papel; o ânimo é frouxo, e o tempo assemelha-se à lamparina de
madrugada. Não tarda o sol do outro dia, um sol dos diabos, impenetrável
como a vida. Adeus, meu caro senhor, leia isto e queira-me bem; perdoe-me
o que lhe parecer mau, e não maltrate muito a arruda, se lhe não cheira a
rosas. Pediu-me um documento humano, ei-lo aqui. Não me peça também o
império do Grão-Mogol, nem a fotografia dos Macabeus; peça, porém, os
meus sapatos de defunto e não os dou a ninguém mais.
Já sabe que foi em 1860. No ano anterior, ali pelo mês de agosto, tendo eu
quarenta e dois anos, fiz-me teólogo, — quero dizer, copiava os estudos de
teologia de um padre de Niterói, antigo companheiro de colégio, que assim
me dava, delicadamente, casa, cama e mesa. Naquele mês de agosto de
1859, recebeu ele uma carta de um vigário de certa vila do interior,
perguntando se conhecia pessoa entendida, discreta e paciente, que quisesse
ir servir de enfermeiro ao coronel
Felisberto, mediante um bom ordenado. O padre falou-me, aceitei com
ambas as mãos, estava já enfarado de copiar citações latinas e fórmulas
eclesiásticas. Vim à Corte despedir-me de um irmão, e segui para a vila.
Chegando à vila, tive más notícias do coronel. Era homem insuportável,
estúrdio, exigente, ninguém o aturava, nem os próprios amigos. Gastava
mais enfermeiros que remédios. A dous deles quebrou a cara. Respondi que
não tinha medo de gente sã, menos ainda de doentes; e depois de entenderme
com o vigário, que me confirmou as notícias recebidas, e me
recomendou mansidão e caridade, segui para a residência do coronel.
Achei-o na varanda da casa estirado numa cadeira, bufando muito. Não
me recebeu mal. Começou por não dizer nada; pôs em mim dous olhos de
gato que observa; depois, uma espécie de riso maligno alumiou-lhe as
feições, que eram duras. Afinal, disse-me que nenhum dos enfermeiros que
tivera, prestava para nada, dormiam muito, eram respondões e andavam ao
faro das escravas; dous eram até gatunos!
— Você é gatuno?
— Não, senhor.
Em seguida, perguntou-me pelo nome: disse-lho e ele fez um gesto de
espanto. Colombo? Não, senhor: Procópio José Gomes Valongo. Valongo?
achou que não era nome de gente, e propôs chamar-me tão-somente
Procópio, ao que respondi que estaria pelo que fosse de seu agrado. Contolhe
esta particularidade, não só porque me parece pintá-lo bem, como porque
a minha resposta deu de mim a melhor idéia ao coronel. Ele mesmo o
declarou ao vigário, acrescentando que eu era o mais simpático dos
enfermeiros que tivera. A verdade é que vivemos uma lua-de-mel de sete
dias.
No oitavo dia, entrei na vida dos meus predecessores, uma vida de cão,
não dormir, não pensar em mais nada, recolher injúrias, e, às vezes, rir delas,
com um ar de resignação e conformidade; reparei que era um modo de lhe
fazer corte. Tudo impertinências de moléstia e do temperamento. A moléstia
era um rosário delas, padecia de aneurisma, de reumatismo e de três ou
quatro afecções menores. Tinha perto de sessenta anos, e desde os cinco toda
a gente lhe fazia a vontade. Se fosse só
rabugento, vá; mas ele era também mau, deleitava-se com a dor e a
humilhação dos outros. No fim de três meses estava farto de o aturar;
determinei vir embora; só esperei ocasião.
Não tardou a ocasião. Um dia, como lhe não desse a tempo uma
fomentação, pegou da bengala e atirou-me dous ou três golpes. Não era
preciso mais; despedi-me imediatamente, e fui aprontar a mala. Ele foi ter
comigo, ao quarto, pediu-me que ficasse, que não valia a pena zangar por
uma rabugice de velho. Instou tanto que fiquei.
— Estou na dependura, Procópio, dizia-me ele à noite; não posso viver
muito tempo. Estou aqui, estou na cova. Você há de ir ao meu enterro,
Procópio; não o dispenso por nada. Há de ir, há de rezar ao pé da minha
sepultura. Se não for, acrescentou rindo, eu voltarei de noite para lhe puxar
as pernas. Você crê em almas de outro mundo, Procópio?
— Qual o quê!
— E por que é que não há de crer, seu burro? redargüiu vivamente,
arregalando os olhos.
Eram assim as pazes; imagine a guerra. Coibiu-se das bengaladas; mas as
injúrias ficaram as mesmas, se não piores. Eu, com o tempo, fui calejando, e
não dava mais por nada; era burro, camelo, pedaço d’asno, idiota, moleirão,
era tudo. Nem, ao menos, havia mais gente que recolhesse uma parte desses
nomes. Não tinha parentes; tinha um sobrinho que morreu tísico, em fins de
maio ou princípios de julho, em Minas. Os amigos iam por lá às vezes
aprová-lo, aplaudi-lo, e nada mais; cinco, dez
minutos de visita. Restava eu; era eu sozinho para um dicionário inteiro.
Mais de uma vez resolvi sair; mas, instado pelo vigário, ia ficando.
Não só as relações foram-se tornando melindrosas, mas eu estava ansioso
por tornar à Corte. Aos quarenta e dois anos não é que havia de acostumarme
à reclusão constante, ao pé de um doente bravio, no interior. Para avaliar
o meu isolamento, basta saber que eu nem lia os jornais; salvo alguma
notícia mais importante que levavam ao coronel, eu nada sabia do resto do
mundo. Entendi, portanto, voltar para a Corte, na primeira ocasião, ainda
que tivesse de brigar com o vigário. Bom é dizer
(visto que faço uma confissão geral) que, nada gastando e tendo guardado
integralmente os ordenados, estava ansioso por vir dissipá-los aqui.
Era provável que a ocasião aparecesse. O coronel estava pior, fez
testamento, descompondo o tabelião, quase tanto como a mim. O trato era
mais duro, os breves lapsos de sossego e brandura faziam-se raros. Já por
esse tempo tinha eu perdido a escassa dose de piedade que me fazia esquecer
os excessos do doente; trazia dentro de mim um fermento de ódio e aversão.
No princípio de agosto resolvi definitivamente sair; o vigário e o médico,
aceitando as razões, pediram-me que ficasse algum tempo mais. Concedilhes
um mês; no fim de um mês viria embora, qualquer que fosse o estado
do doente. O vigário tratou de procurar-me substituto.
Vai ver o que aconteceu. Na noite de vinte e quatro de agosto, o coronel
teve um acesso de raiva, atropelou-me, disse-me muito nome cru, ameaçoume
de um tiro, e acabou atirando-me um prato de mingau, que achou frio, o
prato foi cair na parede onde se fez em pedaços.
— Hás de pagá-lo, ladrão! bradou ele.
Resmungou ainda muito tempo. Às onze horas passou pelo sono.
Enquanto ele dormia, saquei um livro do bolso, um velho romance de
d’Arlincourt, traduzido, que lá achei, e pus-me a lê-lo, no mesmo quarto, a
pequena distância da cama; tinha de acordá-lo à meia-noite para lhe dar o
remédio. Ou fosse de cansaço, ou do livro, antes de chegar ao fim da
segunda página adormeci também. Acordei aos gritos do coronel, e levanteime
estremunhado. Ele, que parecia delirar, continuou nos
mesmos gritos, e acabou por lançar mão da moringa e arremessá-la contra
mim. Não tive tempo de desviar-me; a moringa bateu-me na face esquerda, e
tal foi a dor que não vi mais nada; atirei-me ao doente, pus-lhe as mãos ao
pescoço, lutamos, e esganei-o.
Quando percebi que o doente expirava, recuei aterrado, e dei um grito;
mas ninguém me ouviu. Voltei à cama, agitei-o para chamá-lo à vida, era
tarde; arrebentara o aneurisma, e o coronel morreu. Passei à sala contígua, e
durante duas horas não ousei voltar ao quarto. Não posso mesmo dizer tudo
o que passei, durante esse tempo. Era um atordoamento, um delírio vago e
estúpido. Parecia-me que as paredes tinham vultos; escutava umas vozes
surdas. Os gritos da vítima, antes da luta e durante a luta, continuavam a
repercutir dentro de mim, e o ar, para onde quer que me voltasse, aparecia
recortado de convulsões. Não creia que esteja fazendo imagens nem estilo;
digo-lhe que eu ouvia distintamente umas vozes que me bradavam:
assassino! assassino!
Tudo o mais estava calado. O mesmo som do relógio, lento, igual e seco,
sublinhava o silêncio e a solidão. Colava a orelha à porta do quarto na
esperança de ouvir um gemido, uma palavra, uma injúria, qualquer coisa que
significasse a vida, e me restituísse a paz à consciência. Estaria pronto a
apanhar das mãos do coronel, dez, vinte, cem vezes. Mas nada, nada; tudo
calado. Voltava a andar à toa na sala, sentava-me, punha as mãos na cabeça;
arrependia-me de ter vindo. — "Maldita a hora
em que aceitei semelhante coisa!" exclamava. E descompunha o padre de
Niterói, o médico, o vigário, os que me arranjaram um lugar, e os que me
pediram para ficar mais algum tempo. Agarrava-me à cumplicidade dos
outros homens.
Como o silêncio acabasse por aterrar-me, abri uma das janelas, para
escutar o som do vento, se ventasse. Não ventava. A noite ia tranqüila, as
estrelas fulguravam, com a indiferença de pessoas que tiram o chapéu a um
enterro que passa, e continuam a falar de outra coisa. Encostei-me ali por
algum tempo, fitando a noite, deixando-me ir a uma recapitulação da vida, a
ver se descansava da dor presente. Só então posso dizer que pensei
claramente no castigo. Achei-me com um crime às costas e vi a punição
certa. Aqui o temor complicou o remorso. Senti que os cabelos me ficavam
de pé. Minutos depois, vi três ou quatro vultos de pessoas, no terreiro
espiando, com um ar de emboscada; recuei, os vultos esvaíram-se no ar; era
uma alucinação.
Antes do alvorecer curei a contusão da face. Só então ousei voltar ao
quarto. Recuei duas vezes, mas era preciso e entrei; ainda assim, não
cheguei logo à cama. Tremiam-me as pernas, o coração batia-me; cheguei a
pensar na fuga; mas era confessar o crime, e, ao contrário, urgia fazer
desaparecer os vestígios dele. Fui até a cama; vi o cadáver, com os olhos
arregalados e a boca aberta, como deixando passar a eterna palavra dos
séculos: "Caim, que fizeste de teu irmão?" Vi no
pescoço o sinal das minhas unhas; abotoei alto a camisa e cheguei ao queixo
a ponta do lençol. Em seguida, chamei um escravo, disse-lhe que o coronel
amanhecera morto; mandei recado ao vigário e ao médico.
A primeira idéia foi retirar-me logo cedo, a pretexto de ter meu irmão
doente, e, na verdade, recebera carta dele, alguns dias antes, dizendo-me que
se sentia mal. Mas adverti que a retirada imediata poderia fazer despertar
suspeitas, e fiquei. Eu mesmo amortalhei o cadáver, com o auxílio de um
preto velho e míope. Não saí da sala mortuária; tinha medo de que
descobrissem alguma cousa. Queria ver no rosto dos outros se
desconfiavam; mas não ousava fitar ninguém. Tudo me dava
impaciências: os passos de ladrão com que entravam na sala, os cochichos,
as cerimônias e as rezas do vigário. Vindo a hora, fechei o caixão, com as
mãos trêmulas, tão trêmulas que uma pessoa, que reparou nelas, disse a
outra com piedade:
— Coitado do Procópio! apesar do que padeceu, está muito sentido.
Pareceu-me ironia; estava ansioso por ver tudo acabado. Saímos à rua. A
passagem da meia escuridão da casa para a claridade da rua deu-me grande
abalo; receei que fosse então impossível ocultar o crime. Meti os olhos no
chão, e fui andando. Quando tudo acabou, respirei. Estava em paz com os
homens. Não o estava com a consciência, e as primeiras noites foram
naturalmente de desassossego e aflição. Não é preciso dizer que vim logo
para o Rio de Janeiro, nem que vivi aqui aterrado, embora longe do crime;
não ria, falava pouco, mal comia, tinha alucinações, pesadelos...
— Deixa lá o outro que morreu, diziam-me. Não é caso para tanta
melancolia.
E eu aproveitava a ilusão, fazendo muitos elogios ao morto, chamando-lhe
boa criatura, impertinente, é verdade, mas um coração de ouro. E elogiando,
convencia-me também, ao menos por alguns instantes. Outro fenômeno
interessante, e que talvez lhe possa aproveitar, é que, não sendo religioso,
mandei dizer uma missa pelo eterno descanso do coronel, na igreja do
Sacramento. Não fiz convites, não disse nada a ninguém; fui ouvi-la,
sozinho, e estive de joelhos todo o tempo, persignando-me a miúdo. Dobrei
a espórtula do padre, e distribuí esmolas à porta, tudo por intenção do
finado. Não queria embair os homens; a prova é que fui só. Para completar
este ponto, acrescentarei que nunca aludia ao coronel, que não dissesse:
"Deus lhe fale n’alma!" E contava dele algumas anedotas alegres, rompantes
engraçados...
Sete dias depois de chegar ao Rio de Janeiro, recebi a carta do vigário,
que lhe mostrei, dizendo-me que fora achado o testamento do coronel, e que
eu era o herdeiro universal. Imagine o meu pasmo. Pareceu-me que lia mal,
fui a meu irmão, fui aos amigos; todos leram a mesma cousa. Estava escrito;
era eu o herdeiro universal do coronel. Cheguei a supor que fosse uma
cilada; mas adverti logo que havia outros meios de capturar-me, se o crime
estivesse descoberto. Demais, eu conhecia a
probidade do vigário, que não se prestaria a ser instrumento. Reli a carta,
cinco, dez, muitas vezes; lá estava a notícia.
— Quanto tinha ele? perguntava-me meu irmão.
— Não sei, mas era rico.
— Realmente, provou que era teu amigo.
— Era... Era...
Assim por uma ironia da sorte, os bens do coronel vinham parar às
minhas mãos. Cogitei em recusar a herança. Parecia-me odioso receber um
vintém do tal espólio; era pior do que fazer-me esbirro alugado. Pensei nisso
três dias, e esbarrava sempre na consideração de que a recusa podia fazer
desconfiar alguma cousa. No fim dos três dias, assentei num meio-termo;
receberia a herança e dá-la-ia toda, aos bocados e às escondidas. Não era só
escrúpulo; era também o modo de resgatar
o crime por um ato de virtude; pareceu-me que ficava assim de contas
saldas.
Preparei-me e segui para a vila. Em caminho, à proporção que me ia
aproximando, recordava o triste sucesso; as cercanias da vila tinham um
aspecto de tragédia, e a sombra do coronel parecia-me surgir de cada lado. A
imaginação ia reproduzindo as palavras, os gestos, toda a noite horrenda do
crime...
Crime ou luta? Realmente, foi uma luta, em que eu, atacado, defendi-me,
e na defesa... Foi uma luta desgraçada, uma fatalidade. Fixei-me nessa idéia.
E balanceava os agravos, punha no ativo as pancadas, as injúrias... Não era
culpa do coronel, bem o sabia, era da moléstia, que o tornava assim
rabugento e até mau... Mas eu perdoava tudo, tudo... O pior foi a fatalidade
daquela noite... Considerei também que o coronel não podia viver muito
mais; estava por pouco; ele mesmo o sentia e dizia. Viveria quanto? Duas
semanas, ou uma; pode ser até que menos. Já não era vida, era um molambo
de vida, se isto mesmo se podia chamar ao padecer contínuo do pobre
homem... E quem sabe mesmo se a luta e a morte não foram apenas
coincidentes? Podia ser, era até o mais provável; não foi outra cousa. Fixeime
também nessa idéia...
Perto da vila apertou-se-me o coração, e quis recuar; mas dominei-me e
fui. Receberam-me com parabéns. O vigário disse-me as disposições do
testamento, os legados pios, e de caminho ia louvando a mansidão cristã e o
zelo com que eu servira ao coronel, que, apesar de áspero e duro, soube ser
grato.
— Sem dúvida, dizia eu olhando para outra parte.
Estava atordoado. Toda a gente me elogiava a dedicação e a paciência. As
primeiras necessidades do inventário detiveram-me algum tempo na vila.
Constituí advogado; as cousas correram placidamente. Durante esse tempo,
falava muita vez do coronel. Vinham contar-me cousas dele, mas sem a
moderação do padre; eu defendia-o, apontava algumas virtudes, era
austero...
— Qual austero! Já morreu, acabou; mas era o diabo.
E referiam-me casos duros, ações perversas, algumas extraordinárias.
Quer que lhe diga? Eu, a princípio, ia ouvindo cheio de curiosidade; depois,
entrou-me no coração um singular prazer, que eu sinceramente buscava
expelir. E defendia o coronel, explicava-o, atribuía alguma coisa às
rivalidades locais; confessava, sim, que era um pouco violento... Um pouco?
Era uma cobra assanhada, interrompia-me o barbeiro; e todos, o coletor, o
boticário, o escrivão, todos diziam a mesma coisa; e
vinham outras anedotas, vinha toda a vida do defunto. Os velhos
lembravam-se das crueldades dele, em menino. E o prazer íntimo, calado,
insidioso, crescia dentro de mim, espécie de tênia moral, que por mais que a
arrancasse aos pedaços recompunha-se logo e ia ficando.
As obrigações do inventário distraíram-me; e por outro lado a opinião da
vila era tão contrária ao coronel, que a vista dos lugares foi perdendo para
mim a feição tenebrosa que a princípio achei neles. Entrando na posse da
herança, converti-a em títulos e dinheiro. Eram então passados muitos
meses, e a idéia de distribuí-la toda em esmolas e donativos pios não me
dominou como da primeira vez; achei mesmo que era afetação. Restringi o
plano primitivo: distribuí alguma cousa aos pobres, dei à matriz da vila uns
paramentos novos, fiz uma esmola à Santa Casa da Misericórdia, etc.: ao
todo trinta e dous contos. Mandei também levantar um túmulo ao coronel,
todo de mármore, obra de um napolitano, que aqui esteve até 1866, e foi
morrer, creio eu, no Paraguai.
Os anos foram andando, a memória tornou-se cinzenta e desmaiada.
Penso às vezes no coronel, mas sem os terrores dos primeiros dias. Todos os
médicos a quem contei as moléstias dele, foram acordes em que a morte era
certa, e só se admiravam de ter resistido tanto tempo. Pode ser que eu,
involuntariamente, exagerasse a descrição que então lhes fiz; mas a verdade
é que ele devia morrer, ainda que não fosse aquela fatalidade...
Adeus, meu caro senhor. Se achar que esses apontamentos valem alguma
coisa, pague-me também com um túmulo de mármore, ao qual dará por
epitáfio esta emenda que faço aqui ao divino sermão da montanha: "Bemaventurados
os que possuem, porque eles serão consolados."
FIM

A nova Califórnia

Lima Barreto

Ninguém sabia donde viera aquele homem. O agente do Correio pudera apenas informar que acudia ao nome de Raimundo Flamel, pois assim era subscrita a correspondência que recebia. E era grande. Quase diariamente, o carteiro lá ia a um dos extremos da cidade, onde morava o desconhecido, sopesando um maço alentado de cartas vindas do mundo inteiro, grossas revistas em línguas arrevesadas, livros, pacotes...

Quando Fabrício, o pedreiro, voltou de um serviço em casa do novo habitante, todos na venda perguntaram-lhe que trabalho lhe tinha sido determinado.

- Vou fazer um forno, disse o preto, na sala de jantar.

Imaginem o espanto da pequena cidade de Tubiacanga, ao saber de tão extravagante construção um forno na sala de jantar! E, pelos dias seguintes, Fabrício pôde contar que vira balões de vidros, facas sem corte, copos como os da farmácia - um rol de coisas esquisitas a se mostrarem pelas mesas e prateleiras como utensílios de uma cozinha em que o próprio diabo cozinhasse.

O alarme se fez na vila. Para uns, os mais adiantados, era um fabricante de moeda falsa; para outros, os crentes e simples, um tipo que tinha parte com o tinhoso.

Chico da Tirana, o carreiro, quando passava em frente da casa do homem misterioso, ao lado do carro a chiar, e olhava a chaminé da sala de jantar a fumegar, não deixava de persignar-se e rezar um "credo" em voz baixa; e, não fora a intervenção do farmacêutico, o delegado teria ido dar um cerco na casa daquele indivíduo suspeito, que inquietava a imaginação de toda uma população.

Tomando em consideração as informações de Fabrício, o boticário Bastos concluíra que o desconhecido devia ser um sábio, um grande químico, refugiado ali para mais sossegadamente levar avante os seus trabalhos científicos.

Homem formado e respeitado na cidade, vereador, médico também, porque o doutor Jerônimo não gostava de receitar e se fizera sócio da farmácia para mais em paz viver, a opinião de Bastos levou tranqüilidade a todas as consciências e fez com que a população cercasse de uma silenciosa admiração à pessoa do grande químico, que viera habitar a cidade.

De tarde, se o viam a passear pela margem do Tubiacanga, sentando-se aqui e ali, olhando perdidamente as águas claras do riacho, cismando diante da penetrante melancolia do crepúsculo, todos se descobriram e não era raro que às "boas noites" acrescentassem "doutor". E tocava muito o coração daquela gente a profunda simpatia com que ele tratava as crianças, a maneira pela qual as contemplava, parecendo apiedar-se de que eles tivessem nascido para sofrer e morrer.

Na verdade era de ver-se, sob a doçura suave da tarde, a bondade de Messias com que ele afagava aquelas crianças pretas, tão lisas de pele e tão tristes de modo, mergulhadas no seu cativeiro moral, e também as brancas, de pele baça, gretada e áspera, vivendo amparadas na necessária caquexia dos trópicos.

Por vezes, vinha-lhe vontade de pensar qual a razão de ter Bernardim de Saint-Pierre gasto toda a sua ternura com Paulo e Virgínia e esquecer-se dos escravos que os cercavam...

Em poucos dias a admiração pelo sábio era quase geral, e não o era unicamente porque havia alguém que não tinha em grande conta os méritos do novo habitante.

Capitão Pelino, mestre-escola e redator da Gazeta de Tubiacanga, órgão local e filiado ao partido situacionista embirrava com o sábio.. "Vocês hão de ver, dizia ele, quem é esse tipo... Um caloteiro, um aventureiro ou talvez um ladrão fugido do Rio."

A sua opinião em nada se baseava, ou antes, baseava-se no seu oculto despeito vendo na terra um rival para a fama de sábio de que gozava. Não que Pelino fosse químico, longe disso; mas era sábio, era gramático. Ninguém escrevia em Tubiacanga que não levasse bordoada do Capitão Pelino, e mesmo quando se falava em algum homem notável lá no Rio, ele não deixava de dizer: "Não há dúvida! O homem tem talento, mas escreve: "um outro", "de resto"... E contraía os lábios como se tivesse engolido alguma coisa amarga.

Toda a vila de Tubiacanga acostumou-se a respeitar o solene Pelino, que corrigia e emendava as maiores glórias nacionais. Um sábio...

Ao entardecer, depois de ler um pouco o Sotero, o Cândido de Figueiredo ou o Castro Lopes, e de ter passado mais uma vez a tintura nos cabelos, o velho mestre-escola saía vagarosamente de casa, muito abotoado no seu paletó de brim mineiro, e encaminhava-se para a botica do Bastos a dar dois dedos de prosa. Conversar é um modo de dizer, porque era Pelino avaro de palavras, limitando-se tão somente a ouvir. Quando, porém, dos lábios de alguém escapava a menor incorreção de linguagem, intervinha e emendava. "Eu asseguro, dizia o agente do correio, que... " Por aí o mestre-escola intervinha com mansuetude evangélica: "Não diga 'asseguro' Senhor Bernardes; em português é garanto."

E a conversa continuava depois da emenda, para ser de novo interrompida por uma outra. Por essas e outras, houve muitos palestradores que se afastaram, mas Pelino, indiferente, seguro dos seus deveres, continuava o seu apostolado de vernaculismo. A chegada do sábio veio distraí-lo um pouco da sua missão. Todo o seu esforço voltava-se agora para combater aquele rival, que surgia tão inopinadamente.

Foram vãs as suas palavras e a sua eloqüência: não só Raimundo Flamel pagava em dias as suas contas, como era generoso - pai da pobreza - e o farmacêutico vira numa revista de específicos seu nome citado como químico de valor.

II

Havia já anos que o químico vivia em Tubiacanga, quando, uma bela manhã, Bastos o viu entrar pela botica adentro. O prazer do farmacêutico foi imenso. O sábio não se dignara até aí visitar fosse quem fosse e, certo dia, quando o sacristão Orestes ousou penetrar em sua casa, pedindo-lhe uma esmola para a futura festa de Nossa Senhora da Conceição, foi com visível enfado que ele o recebeu e atendeu.

Vendo-o, Bastos saiu de detrás do balcão, correu a recebê-lo com a mais perfeita demonstração de quem sabia com quem tratava e foi quase em uma exclamação que disse:

- Doutor, seja bem-vindo.

O sábio pareceu não se surpreender nem com a demonstração de respeito do farmacêutico, nem com o tratamento universitário. Docemente, olhou um instante a armação cheia de medicamentos e respondeu:

- Desejava falar-lhe em particular, senhor Bastos.

O espanto do farmacêutico foi grande. Em que poderia ele ser útil ao homem, cujo nome corria mundo e de quem os jornais falavam com tão acendrado respeito? Seria dinheiro? Talvez... Um atraso no pagamento das rendas, quem sabe? E foi conduzindo o químico para o interior da casa, sob o olhar espantado do aprendiz que, por um momento, deixou a "mão" descansar no gral, onde macerava uma tisana qualquer.

Por fim, achou ao fundo, bem no fundo, o quartinho que lhe servia para exames médicos mais detidos ou para as pequenas operações, porque Bastos também operava. Sentaram-se e Flamel não tardou a expor:

- Como o senhor deve saber, dedico-me à química, tenho mesmo um nome respeitado no mundo sábio...
- Sei perfeitamente, doutor, mesmo tenho disso informado, aqui, aos meus amigos.
- Obrigado. Pois bem: fiz uma grande descoberta, extraordinária... Envergonhado com o seu entusiasmo, o sábio fez uma pausa e depois continuou:
- Uma descoberta... Mas não me convém, por ora, comunicar ao mundo sábio, compreende? - Perfeitamente.
- Por isso precisava de três pessoas conceituadas que fossem testemunhas de uma experiência dela e me dessem um atestado em forma, para resguardar a prioridade da minha invenção... O senhor sabe: há acontecimentos imprevistos e...
- Certamente! Não há dúvida!
- Imagine o senhor que se trata de fazer ouro...
- Como? O quê? fez Bastos, arregalando os olhos.
- Sim! Ouro! disse, com firmeza, Flamel.
- Como?
- O senhor saberá, disse o químico secamente. A questão do momento são as pessoas que devem assistir a experiência, não acha?
- Com certeza, é preciso que os seus direitos fiquem resguardados, porquanto...
- Uma delas, interrompeu o sábio, é o senhor; as outras duas, o Senhor Bastos fará o favor de indicar-me.

O boticário esteve um instante a pensar, passando em revista os seus conhecimentos e, ao fim de uns três minutos, perguntou:

- O Coronel Bentes lhe serve? Conhece?
- Não. O senhor sabe que não me dou com ninguém aqui.
- Posso garantir-lhe que é homem sério, rico e muito discreto.
- É religioso? Faço-lhe esta pergunta, acrescentou Flamel logo, porque temos que lidar com ossos de defunto e só estes servem...
- Qual! É quase ateu...
- Bem! Aceito. E o outro?
Bastos voltou a pensar e dessa vez demorou-se um pouco mais consultando a sua memória... Por fim, falou:

- Será o Tenente Carvalhais, o coletor, conhece?
- Como já lhe disse...
- É verdade. É um homem de confiança, sério, mas...
- Que é que tem?
- É maçom.
- Melhor.
- E quando é?
- Domingo. Domingo, os três irão lá em casa assistir a experiência e espero que não me recusarão as suas firmas para autenticar a minha descoberta.
- Está tratado.

Domingo, conforme prometeram, as três pessoas respeitáveis de Tubiacanga foram à casa de Flamel, e, dias depois, misteriosamente, ele desaparecia sem deixar vestígios ou explicação para o seu desaparecimento.

Tubiacanga era uma pequena cidade de três ou quatro mil habitantes, muito pacífica, em cuja estação, de onde em onde, os expressos davam a honra de parar. Há cinco anos não se registrava nela um furto ou roubo. As portas e janelas só eram usadas... porque o Rio as usava.

O único crime notado em seu pobre cadastro fora um assassinato por ocasião das eleições municipais; mas, atendendo que o assassino era do partido do governo, e a vítima da oposição, o acontecimento em nada alterou os hábitos da cidade, continuando ela a exportar o seu café e a mirar as suas casas baixas e acanhadas nas escassas águas do pequeno rio que a batizara.

Mas qual não foi a surpresa dos seus habitantes quando se veio a verificar nela um dos repugnantes crimes de que se tem memória! Não se tratava de um esquartejamento ou parricídio: não era o assassinato de uma família inteira ou um assalto à coletoria; era coisa pior, sacrílega aos olhos de todas as religiões e consciências: violavam-se as sepulturas do "Sossego", do seu cemitério, do seu campo-santo.

Em começo, o coveiro julgou que fossem cães, mas, revistando bem o muro, não encontrou senão pequenos buracos. Fechou-os; foi inútil. No dia seguinte, um jazigo perpétuo arrombado e os ossos saqueados; no outro, um carneiro e uma sepultura rasa. Era gente ou demônio. O coveiro não quis mais continuar as pesquisas por sua conta, foi ao subdelegado e a notícia espalhou-se pela cidade.

A indignação na cidade tomou todas as feições e todas as vontades. A religião da morte precede todas e certamente será a última a morrer nas consciências. Contra a profanação, clamaram os seis presbiterianos do lugar - os bíblicos, como lhes chama o povo; clamava o Agrimensol Nicolau, antigo cadete, e positivista do rito Teixeira Mendes; clamava o Major Camanho, presidente da Loja Nova Esperança; clamavam o turco Miguel Abudala, negociante de armarinho, e o cético Belmiro, antigo estudante, que vivia ao deus-dará, bebericando parati nas tavernas. A própria filha do engenheiro residente da estrada de ferro, que vivia desdenhando aquele lugarejo, sem notar sequer os suspiros dos apaixonados locais - sempre esperando que o expresso trouxesse um príncipe a desposá-la -, a linda e desdenhosa Cora não pôde deixar de compartilhar da indignação e do horror que tal ato provocara em todos do lugarejo. Que tinha ela com o túmulo de antigos escravos e humildes roceiros? Em que podia interessar aos seus lindos olhos pardos o destino de tão humildes ossos? Porventura o furto deles perturbaria o seu sonho de fazer radiar a beleza de sua boca, dos seus olhos e do seu busto nas calçadas do Rio?

Decerto, não; mas era a Morte, a Morte implacável e onipotente, de que ela também se sentia escrava, e que não deixaria um dia de levar a sua linda caveirinha para a paz eterna do cemitério. Aí Cora queria os seus ossos sossegados, quietos e comodamente descansando num caixão bem feito e num túmulo seguro, depois de ter sido a sua carne encanto e prazer dos vermes...

O mais indignado, porém, era Pelino. O professor deitara artigo de fundo, imprecando, bramindo, gritando: "Na história do crime, dizia ele, já bastante rica de fatos repugnantes, como sejam: o esquartejamento de Maria de Macedo, o estrangulamento dos irmãos Fuoco, não se registra um que o seja tanto como o saque às sepulturas do 'Sossego'."

E a vila vivia em sobressalto. Nas faces não se lia mais paz; os negócios estavam paralisados; os namoros suspensos. Dias e dias por sobre as casas pairavam nuvens negras e, à noite, todos ouviam ruídos, gemidos, barulhos sobrenaturais... Parecia que os mortos pediam vingança...

O saque, porém, continuava. Toda noite eram duas, três sepulturas abertas e esvaziadas de seu fúnebre conteúdo. Toda a população resolveu ir em massa guardar os ossos dos seus maiores. Foram cedo, mas, em breve, cedendo à fadiga e ao sono, retirou-se um, depois outro e, pela madrugada, já não havia nenhum vigilante. Ainda nesse dia o coveiro verificou que duas sepulturas tinham sido abertas e os ossos levados para destino misterioso.

Organizaram então uma guarda. Dez homens decididos juraram perante o delegado vigiar durante a noite a mansão dos mortos.

Nada houve de anormal na primeira noite, na segunda e na terceira; mas, na quarta, quando os vigias já se dispunham a cochilar, um deles julgou lobrigar um vulto esgueirando-se por entre a quadra dos carneiros. Correram e conseguiram apanhar dois dos vampiros. A raiva e a indignação, até aí sopitadas no ânimo deles, não se contiveram mais e deram tanta bordoada nos macabros ladrões, que os deixaram estendidos como mortos.

A notícia correu logo de casa em casa e, quando, de manhã, se tratou de estabelecer a identidade dos dois malfeitores, foi diante da população inteira que foram neles reconhecidos o Coletor Carvalhais e o Coronel Bentes, rico fazendeiro e presidente da Câmara. Este último ainda vivia e, a perguntas repetidas que lhe fizeram, pôde dizer que juntava os ossos para fazer ouro e o companheiro que fugira era o farmacêutico.

Houve espanto e houve esperanças. Como fazer ouro com ossos? Seria possível? Mas aquele homem rico, respeitado, como desceria ao papel de ladrão de mortos se a coisa não fosse verdade!

Se fosse possível fazer, se daqueles míseros despojos fúnebres se pudesse fazer alguns contos de réis, como não seria bom para todos eles!

O carteiro, cujo velho sonho era a formatura do filho, viu logo ali meios de conseguí-la. Castrioto, o escrivão do juiz de paz, que no ano passado conseguiu comprar uma casa, mas ainda não a pudera cercar, pensou no muro, que lhe devia proteger a horta e a criação. Pelos olhos do sitiante Marques, que andava desde anos atrapalhado para arranjar um pasto, pensou logo no prado verde do Costa, onde os seus bois engordariam e ganhariam forças...

Às necessidades de cada um, aqueles ossos que eram ouro viriam atender, satisfazer e felicitá-los; e aqueles dois ou três milhares de pessoas, homens, crianças, mulheres, moços e velhos, como se fossem uma só pessoa, correram à casa do farmacêutico.

A custo, o delegado pôde impedir que varejassem a botica e conseguir que ficassem na praça, à espera do homem que tinha o segredo de todo um Potosi. Ele não tardou a aparecer. Trepado a uma cadeira, tendo na mão uma pequena barra de ouro que reluzia ao forte sol da manhã, Bastos pediu graça, prometendo que ensinaria o segredo se lhe poupassem a vida. "Queremos já sabê-lo," gritaram. Ele então explicou que era preciso redigir a receita, indicar a marcha do processo, os reativos - trabalho longo que só poderia ser entregue impresso no dia seguinte. Houve um murmúrio, alguns chegaram a gritar, mas o subdelegado falou e responsabilizou-se pelo resultado.

Docilmente, com aquela doçura particular às multidões furiosas, cada qual se encaminhou para a casa, tendo na cabeça um único pensamento: arranjar imediatamente a maior porção de ossos de defunto que pudesse.

O sucesso chegou à casa do engenheiro residente da estrada de ferro. Ao jantar, não se falou em outra coisa. O doutor concatenou o que ainda sabia do seu curso, e afirmou que era impossível. Isto era alquimia, coisa morta: ouro é ouro, corpo simples, e osso é osso, um composto, fosfato de cal. Pensar que se podia fazer de uma coisa outra era "besteira". Cora aproveitou para rir-se petropolimente da crueldade daqueles botocudos; mas sua mãe, Dona Emília, tinha fé que a coisa era possível.

À noite, porém, o doutor percebendo que a mulher dormia, saltou a janela e correu em direitura ao cemitério; Cora, de pés nus, com as chinelas nas mãos, procurou a criada para irem juntas à colheita de ossos. Não a encontrou, foi sozinha; e Dona Emília, vendo-se só, adivinhou o passeio e lá foi também. E assim aconteceu na cidade inteira. O pai, sem dizer ao filho, saía; a mulher, julgando enganar o marido, saía; os filhos, as filhas, os criados - toda a população, sob a luz das estrelas assombradas, correu ao satânico rendez-vous no "Sossego". E ninguém faltou. O mais rico e o mais pobre lá estavam. Era o turco Manoel, era o professor Pelino, o Doutor Jerônimo, o Major Camanho, Cora, a linda e deslumbrante Cora, com seus dedos de alabastro, revolvia a sânie das sepulturas, arrancava as carnes, ainda podres agarradas tenazmente aos ossos e deles enchia o seu regaço até ali inútil. Era o dote que colhia e as suas narinas, que se abriam em asas rosadas e quase transparentes, não sentiam o fétido dos tecidos apodrecidos em lama fedorenta...

A desinteligência não tardou a surgir; os mortos eram poucos e não bastavam para satisfazer a fome dos vivos. Houve facadas, tiros, cachações. Pelino esfaqueou o turco por causa de um fêmur e mesmo entre famílias questões surgiram. Unicamente, o carteiro e o filho não brigaram. Andaram juntos e de acordo e houve uma vez que o pequeno, uma esperta criança de onze anos, até aconselhou o pai: "Papai vamos aonde está mamãe; ela era tão gorda..."

De manhã, o cemitério tinha mais mortos do que aqueles que recebera em trinta anos de existência. Uma única pessoa lá não estivera, não matara nem profanara sepulturas: fora o bêbado Belmiro.

Entrando assim numa venda, meio aberta, e nela não encontrando ninguém, enchera uma garrafa de parati e se deixara ficar a beber sentado na margem do Tubiacanga, vendo escorrer mansamente as suas águas sobre o áspero leito de granito - ambos, ele e o rio, indiferentes ao que já viram, mesmo à fuga do farmacêutico, com seu Potosi e o seu segredo, sob o dossel eterno das estrelas.